quinta-feira, 10 de novembro de 2016

O MALEMBÁ






















Subia a Rua Oito de Dezembro, vindo da Rua Santa Rita de São Salvador da Bahia de Todos os Santos. À esquerda, na altura da casa de Dr. Hermógenes, ou melhor, em frente à casa de Frank, existia uma frondosa gameleira branca na qual  eu comecei a escalar. Logo percebi que a  cada passo acima, a gameleira  se afundava. Insisti, mas tanto subia, tanto descia. Seu tronco já afundara pela metade.
Estava nesta lida quando surge um rapaz, bigode fino, um cabo-verde, cabelos negros como a asa da graúna, como dizia Alencar. Eu estava profanando a árvore, uma gameleira branca, um malembá sagrado, um irocô. Estava apenas escalando-a pra poder voar. Curiosos se achegaram, iniciando uma discussão sobre a sacralidade da árvore e minha capacidade de voar. Eu mesmo, por medo da multidão, passei a defender a árvore e sua sacralidade, enquanto uns me chamavam de impostor, de palhaço, um babaca, querendo aparecer. Só então, vi um ojá branco amarrado ao malembá, formando um laço e  restos de omalá, inhame, um pernil de carneiro, patas de cágado,  ajabó,  caruru, feijão fradinho,  deburu,  acaçá,  ebô e outras iguarias  em alguidares  espalhados pelo chão.  Eró Zaratembo.
O clima estava ficando tenso. Surge um senhor, de aspecto   ameaçador e conciliador, ao mesmo tempo, trazia .na mão um ixã. Era o Tatá de Inquice, pai do rapaz que falava comigo. Então percebi ser ali um terreiro e aquela árvore, um irocô. Moreno magro, bigodinho brilhante  e cabelos encaracolados,  trazia um sorriso nos seus olhos verdes. No andar, no trajar, um certo  ar de fidalguia e elegância. Calças de seda branca e casaco de seda verde, ornado com rendas amarelas nas bordas. Fez sinal para que nos calássemos, com tanta magia no olhar que a  contenda teve fim. Disse não estar ofendido pelo meu ato. Não fizera por mal. Piores, gente da casa,  profanadores dos ritos sagrados. Agradeci por aquelas palavras de sabedoria e pedi  permissão para mostrar a todos o que pretendia fazer, assentiu o doté.
Mas acabei deixando de lado o irocô e subi no  muro do Ilê de onde vi o despenhadeiro,  antepondo-se ao palacete Henriqueta Catarino. Abri meus braços, nem preciso dizer, voar sempre me trouxe de pavor, medo de não voar e passar decepção. Como saltar de paraquedas que não se abre. Lancei-me, entretanto, no espaço,  braços abertos no ar. Sacudi-os arriba, abaixo. Comecei alçar vôo. Puxava o  ar como se estivesse nadando. Os braços-asas. Viu a cajazeira, logo encostado ao muro do quintal do Dr. Hermógenes, a quinta do palacete, onde tantas vezes fora roubar frutas, incentivado por Clarisse, a babá dos meninos. Vi, em seguida,  o cemitério, não o dos ingleses, mas outro, a seu  lado. Passei a planar tranquilamente sobre árvores, campas e torres. Pousei, afinal sobre uma sepultura. Uma velha e uma jovem rezavam entre flores e velas. Assustaram-se com minha chegada. Abraçaram-se gritando uma pela outra. Mãe e filha. Nem adiantou pedir-lhes calma. Mais ansiosas ficaram. Profanador, gritaram.  Lá de cima,  palmas pelo meu feito. Elas não entenderam. Imprecavam contra mim e contra eles.  A jovem,  passou la mão num jarro e o atiçou contra mim. Pedras, paus. Pernas, pra que te quero? Pisando quase nos meus cascos  xingavam, gritavam. Saía fogo de suas bocas, ou era água que queimava. Trepei num túmulo mais alto. Tentei alçar vôo. Não consegui. Quem  me aplaudia lá de cima, passou a me vaiar. Alguns desceram a me perseguir no cemitério. Corria e corria e corria. Minhas calças caíram. Eu não tinha mais minhas calças. Com as mãos, escondia as vergonhas. Isto me impedia de correr mais depressa. Pega o Bruxo. Pega o necrófilo. Ele voa como bruxa. Ele voa sem bassoura. Lá em cima cresceu o movimento de gente. Vociferavam contra mim. Podia ver de longe,  Ruy Barbosa com seu bigode branco,  lunetas de aro fino, e gravata borboleta, cerrando os punhos, gritando. Réprobo,  Íncubo. Arimã. Anhangá do inferno. Sujeitinho pernóstico, até pra xingar vem ele com este linguajar tirado a clássico. Também pudera, um homem fora do seu tempo. Conhecida tudo do passado, menos do presente. De outro lado, cabelos revoltos, barba apocalíptica, atroava Glauber Rocha,  como se estivesse dirigindo uma cena de seus filmes. Corre porra. Abre os braços. Sobe naquela torre.  Voa porra. Voa.  Gritos de um louco que  me deixavam varrido.  Eu não sabia bem o que fazer. Castro Alves vendo aquela multidão,  cofiou o bigode, passou a mão pela vasta cabeleira,  começou a esganiçar: “E eu sei que vou morrer, dentro em  meu peito um mal terrível me devora a vida. E morro ó Deus! na aurora da existência. Adeus, vida! adeus glória! Amor! Anelos!”. A turba gozava meu infortúnio, como gozaram o incêndio do Mercado Modelo. Torres mouriscas se derretendo sob as línguas do fogo, tal como ardiam as pessoas sob o fogo da Santa Inquisição. (E como era santa).  Olhava ao redor. Uma árvore, precisava  subir, não havia, porque palmeiras, cajazeiras e ciprestes  eram difíceis de  se escalar. Na azáfama de me livrar daquela agonia, entrei na igreja daquele santo campo, onde o padre Antonio Vieira, o paiaçu dos Tupinambás, dizia, ante um féretro sobre a essa, uma missa perante uma assistência chorosa e triste. Alvoroço, com minha presença. Um salteador, pensaram. Calma gente, calma. Me ajoelhei num banco, tentando fazer uma oração, tentando só, porque nenhuma passava das primeiras frases. 


Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.

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