sábado, 11 de junho de 2016

CRIME SEM CASTIGO



Salvador, 20 de janeiro de 2012










Caro Amigo,

Corroem-me ganas de te contar segredos presos em mim, desde aquela noite. Coragem? Aqui chegou e morreu. Receios. Falaste,  um dia, de indenizatórias. Parentes de vítimas assassinadas poderiam ter reparação pela morte. Com certeza, pagar pela morte de alguém é mais penoso do que ser preso, porque se sabe que ninguém cumpre o total da pena e mais cedo ou mais tarde, se consegue a liberdade, mas se mexe no bolso...
Você não sabe o quanto tenho sofrido em manter este segredo dentro de mim, sem que possa partilhar nem com uma pessoa que tenho como meu maior amigo. Foram noites e noites sem dormir, sem alguém a quem  confiar. Sempre confiei em você, mas você teve uma paquera com ela. Tinha medo, e além disso, você foi sumindo e, claro,  tudo diminui com a distancia.  Tinha medo de se descobrir tudo, nunca se sabe as voltas que o mundo dá.
Sabia que o crime prescreveria ogano e hoje li no jornal sobre a prescrição. Este dia era esperado por nós, na mais absoluta angustia. Esta noite, como em inúmeras outras,  estive pensando. O crime já prescreveu, por que não te contar tudo? Ninguém vai pagar mais por coisa alguma. Por isto resolvi te contar o que aconteceu. Você me havia dito que tinha vontade de escrever sobre o assunto, mas você mesmo tinha medo. Vou te contar tudo, não sei escrever como você, cabe-lhe fazer de meus escritos o que  bem entender.  Deixar do jeito que está, fazer um romance, um conto policial, um estudo de criminologia, de psicologia, enfim o que quiser. Faça de conta que tudo foi escrito por você, eu não quero nem saber de autoria e muito menos de direitos autorais. Basta, claro que inda tenho medo, mas seja lá o que Deus quiser.
Você não sabe, rolou muita coisa antes que se jogasse o corpo dela nas dunas. Hoje não me lembro de certos detalhes, mas vou fazer o possível para me recordar, com a ajuda de alguns recortes de jornais que guardei comigo a sete chaves, sem que ninguém soubesse,  e, a despeito das mil mudanças que fiz, ainda os tenho sob minha guarda.
Naquela noite, estava como que embriagado, porque não me embriago nunca, mas nem sei mesmo, se não  completamente bêbado, por  ter consentido em se fazer tanta miséria sobre uma pessoa. Hoje me sinto perplexo e enojado. Posso agora refletir o que não poderia ter também acontecido com você, quando, ainda não familiarizado com as maldades do homem, em Paris, se juntava a  jovens  do mundo inteiro,   de idéias  estapafúrdias, de formação as mais diversas, e até mesmo contrária da sua, como você me dizia, nos longos bate-papos que tinhamos, e se entregavam,  às noitadas, ao prazer próprio da juventude, sem medo algum, porque o medo não é sentimento que faça morada no jovem, ou mesmo o frequente amiúde.
Você poderia ter passado pelo que passei, e o que é pior, em país estrangeiro, onde fatalmente a aplicação da lei é mais rigorosa do que aqui. Porque, juro, nada fiz pela prescrição, foi  ineficiência e inércia da policia e da própria justiça,  autoridades e funcionários, preocupados unicamente com o contra-cheque do fim do mês e as "custas por fora", o CPF,  complementar da féria do mês que o judiciário o poder mais corrupto da república.
Gastei o mínimo, muito embora outros tenham gastado quantia até vultosa pra matar o processo, fazer chegar a este fim. Em outros países todos nós teríamos um mínimo de remorso, certamente alguém de nós, arrependido, já teria se apresentado à justiça e confessado e ai todos estaríamos perdidos.  Fui eu que matei aquela mulher. Mas nós somos cara de pau. O brasileiro morre negando, dizendo  mentiras. É incapaz de reconhecer o próprio erro. Gostaria de saber porquê somos assim. Admira-me quando vejo na tevê,   em outros países,  acusados de qualquer crime confessarem:  "Eu sou culpado". Uns até se matam perante as câmaras, como fez Robert "Budd" Dwyer, dando  um tiro na boca, numa entrevista  coletiva, por ter sido  acusado de receber, como tesoureiro do estado, US$ 300 mil, numa barganha. Não confessou, mas fez um discurso digno de um grande tribuno.
Agradeço a Deus por meus 47 anos de desafios, experiências estimulantes, momentos felizes, esposa e filhos maravilhosos. Sem razão, minha vida virou. Pessoas  me telefonam e escrevem desesperadas. Sabem que sou inocente e quero ajudar.  Num país que se vangloria de ser uma democracia, nada pode fazer a plateia  afim de evitar minha punição  por um crime que todos  sabem que  não cometi.
Malcom Muir é um juiz conhecido por sentenças medievais. Enfrento, na prisão,  pena máxima de 55 anos e multa de  300 mil dólares,  por ser inocente. Aqui os juízes não têm pejo de alardear para a imprensa o que bem entendem, fez Muir.  “Sentiu-se mal”  ao culpar-me, mas não  se sentiu mal em dizer que vai me condenar, esquecendo-se dos demais envolvidos. Estes sabem da minha inocência, estou como bode expiatório, não passando tudo isto  de perseguição política. Isto é  um gulag americano.
Acreditam em mim, peço  a amizade que sempre tive e rezem por minha família, trabalhem por um verdadeiro sistema judicial  nos Estados Unidos, esforcem-se pela minha reabilitação.  Que  nossas famílias não sejam maculadas  por esta injustiça contra mim.
A justiça e a verdade hão de prevalecer, e,  inocentado,  devotaremos o resto de nossas vidas ao trabalho para criar um sistema de justiça justa  nos Estados Unidos. O veredito de culpa da culpa presumível impera, mas nossa luta irá mudar um dia o nosso sistema legal.

Repentinamente interrompeu o discurso, tirou de um envelope  um revolver e atirou na própria boca; Correria na estúdio, as câmeras registrando  sua queda a jorrar  sangue pela boca, pelo nariz, pelos ouvidos. Dantesco? Trágico? Mas a pura realidade, um espetáculo realidade, como nunca se viu antes.












Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve nas livrarias.